O Supremo Tribunal Federal ao negar seguimento ao Recurso Extraordinário 846102, reconheceu o direito de casais homossexuais adotarem nas mesmas circunstâncias que casais heterossexuais.
Na decisão a relatora frisou que "a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva" Carmen Lúcia
SEGUE A ÍNTEGRA DA DECISÃO DO RE/846102
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DECISÃO
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E
RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS.
ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO RECORRIDO
HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.
Relatório
1.
Recurso extraordinário interposto com base na al. a do inc. III do art. 102 da Constituição da República contra o
seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Paraná:
“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO POR CASAL
HOMOAFETIVO. SENTENÇA TERMINATIVA. QUESTÃO DE MÉRITO E NÃO DE CONDIÇÃO DA AÇÃO.
HABILITAÇÃO DEFERIDA. LIMITAÇÃO QUANTO AO SEXO E À IDADE DOS ADOTANDOS EM RAZÃO
DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOTANTES. INADMISSÍVEL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL.
APELO CONHECIDO E PROVIDO.
1. Se as uniões homoafetivas já são
reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a
merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos
onde a lei não prevê.
2. Delimitar o sexo e a idade da
criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de
filiação, sem vínculos biológicos, em ato de caridade provido de obrigações
sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento” (doc. 6).
Os embargos de declaração opostos foram
rejeitados.
2.
O Recorrente alega contrariado o art. 226, § 3º, da Constituição da República, afirmando haver
“duas questões jurídicas que emergem do
contexto apresentado, para que se possa oferecer solução ao presente recurso:
i) se há possibilidade de interpretação extensiva do preceito constitucional
para incluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo na concepção de união
estável como entidade familiar; ii) se a interpretação restritiva do preceito
constitucional incorreria em discriminação quanto à opção sexual.
(…)
Logicamente, nem dois homens e uma
mulher; nem duas mulheres e um homem (fatos estes que não chegam a ser tão
raros em certas regiões do Brasil); nem dois homens ou duas mulheres; foram
previstos pelo constituinte como configuradores de uma união estável, ainda que
os integrantes dessas relações, hipoteticamente consideradas, coabitem em
caráter análogo ao de uma união estável, ou seja, de forma pública e duradoura,
e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
(…)
Com isso, a nível constitucional, pelo
que foi dito, infere-se, em primeiro lugar, que não há lacuna, mas sim, uma
intencional omissão do constituinte em não eleger (o que perdura até a
atualidade) a união de pessoas do mesmo sexo como caracterizadores de entidade
familiar.
(…)
E vamos além, a generalização, no lugar
da individualização do tratamento jurídico a ser dado a situações materialmente
diversas, poderá, sim, se não respeitadas e previstas as idiossincrasias e particularidades
dos relacionamentos homoafetivos, vir em maior prejuízo que benefício aos seus
integrantes, ferindo axialmente o princípio da igualdade, por tratar igualmente
situações desiguais”
(doc. 7).
Apreciada a matéria trazida na espécie,
DECIDO.
3.
Razão jurídica não assiste ao Recorrente.
4.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132, Relator o
Ministro Ayres Britto, por votação unânime, este Supremo Tribunal Federal deu
interpretação conforme ao art. 1.723 do Código Civil, “para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da
união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que
é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união
estável heteroafetiva” (DJe 14.10.2011).
No voto, o Ministro Relator ressaltou
que
“a Constituição Federal não faz a menor
diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés
dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos
heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por
isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para
compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família”
nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o
sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo
do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços
doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva
colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na
perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à
plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais
do trabalho. Isso numa projeção exógena ou extramuros domésticos, porque,
endogenamente ou interna corporis, os
beneficiários imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus
originários formadores, parentes e agregados. Incluído nestas duas últimas
categorias dos parentes e agregados o contingente das crianças, dos
adolescentes e dos idosos. Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto
mais protegidos quanto partícipes dessa vida em comunhão que é, por natureza, a
família. Sabido que lugar de crianças e adolescentes não é propriamente o
orfanato, menos ainda a rua, a sarjeta, ou os guetos da prostituição infantil e
do consumo de entorpecentes e drogas afins. Tanto quanto o espaço de vida ideal
para os idosos não são os albergues ou asilos públicos, muito menos o relento
ou os bancos de jardim em que levas e levas de seres humanos abandonados despejam
suas últimas sobras de gente. Mas o comunitário ambiente da própria família.
Tudo conforme os expressos dizeres dos artigos 227 e 229 da Constituição, este
último alusivo às pessoas idosas, e, aquele, pertinente às crianças e aos
adolescentes.
Assim interpretando por forma
não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe
compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da
coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a
incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou
homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente - é extrair do
sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente
verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais
heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se
desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família.
Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um
núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as
mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade”.
O acórdão recorrido harmoniza-se com
esse entendimento jurisprudencial.
Nada há, pois, a prover quanto às
alegações do Recorrente.
5.
Pelo exposto, nego
seguimento a este recurso extraordinário (art. 557, caput, do Código de Processo Civil e art. 21, § 1º, do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal).
Publique-se.
Brasília, 5 de março de 2015.
Ministra CÁRMEN LÚCIA
Relatora
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 846102.